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Coisa de rico? Em Salvador, camarão está mais barato que frango

 Seja fresco ou defumado, o crustáceo é peça importante na culinária baiana e pode ser encontrado por R$ 20, o quilo.

Vestindo uma bermuda folgada do Bahia que exibia o tradicional cofrinho na parte traseira, além de uma camiseta regata que desenhava sua barriga cultivada ao longo dos 65 anos, o aposentado Gerson Boquinha preparava seu kit de sobrevivência para o fim de semana na Ilha de Itaparica. A cerveja já estava no carro, um Corsa 2010. Faltava o tira-gosto. “Quero três quilos de camarão. E não me venha com essas  zorras pequenas, não. Quero as bitelas, pistolão”, exige o cliente, no Mercado do Peixe, em Água de Meninos. Alguém deve imaginar que seu Gerson está barão, montado na grana, né?  Longe disso..

“Antes, eu levava carne do sol para meu cafofo na ilha, mas está bem mais caro que camarão. Não sou rico, não. Mas aqui compro pistola por 30 conto, o quilo. A carne está 60”, revela Gerson, que mostra um outro lado da polêmica que envolveu o ator e diretor baiano, Wagner Moura. O artista foi alvo de críticas ao ser fotografado comendo uma quentinha de acarajé numa ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), em São Paulo. Tudo isso porque tinha camarão na bendita marmita. 

Na natureza, o camarão nem está perto do topo da cadeia alimentar. É um crustáceo que se alimenta de restos de animais. Um necrófago. Contudo, esse bichinho, em outro contexto, o da sociedade capitalista, se torna um símbolo culinário e de casta financeira: apenas os ricos podem apreciar sem moderação. Relacionar camarão com pobre ou movimentos populares  parece um absurdo e gerou revolta ver a iguaria na exibição popular do filme Marighella. 

Ver Wagner Moura comendo camarão numa quentinha causou revolta e trouxe à tona uma questão: só rico pode comer camarão? 

“Wagner Moura: para vocês mortadela. Para mim, camarão, seus otários!”, publicou o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, compartilhando a foto da quentinha de Moura com camarão. Sabemos que acarajé não é servido com mortadela. O que muita gente não sabe é que camarão deixou de ser produto apenas para rico apreciar. Pelo menos aqui na Bahia, este bichinho está mais barato que um peito de frango no mercado.

“A procura aqui não para, é o dia todo as pessoas comprando camarão, seja para comer ou revender. Aqui eu vendo o camarão cinza, graúdo, a R$ 20 reais o quilo. Nessa crise, o camarão virou a melhor opção. Com o preço de um quilo de carne do sol você leva três de camarão. Quem fala que é coisa de rico não sabe a realidade que vivemos. Camarão é para todos”, disse Chiquinho, dono da Corno Pescados em Água de Meninos. Ele vende, em média, mais de 30 quilos de camarão por dia.  

Camarão x carne 
Para se ter uma ideia, uma bandeja de 1 quilo de peito de frango custa R$ 25 numa rede de mercados aqui de Salvador. Uma alcatra, R$ 50,99. É até sacrilégio comparar com o filé mignon: R$ 99,90. Já o camarão pistola no Mercado do Peixe custa, em média, R$ 38. Se chorar ainda consegue desconto ou o camarão descascado na hora, sem custo. Tudo bem que o camarão fresco não é utilizado no acarajé, mas o defumado ou seco. Mesmo assim, o preço não é o grande vilão da crise econômica. O valor do quilo está, em média, R$ 40. Achou muito? Pense que esta quantidade de camarão seco é o suficiente para fazer um caruru completo (com vatapá, feijão fradinho…) para mais de 20 pessoas, lembrando que ele faz parte de quase todas as receitas da comida baiana. Na Bahia, camarão é cultura, culinária e axé.

“Há elementos que são intrínsecos e fundamentais na cultura de um povo. Aqui na Bahia, quando falamos de camarão não é diferente. É algo muito importante na elaboração de comidas típicas, como a moqueca ou o caruru, além das comidas de oferendas no candomblé. Ele sempre está presente. Na Bahia, o camarão dá sabor, é peça indispensável na comida votiva, além de ser consumida por todas as classes sociais. É impossível imaginar a cultura baiana sem o camarão, seja no consumo, cultura e religiosidade. É fundamental”,  disse Leonel Monteiro,  presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA).

Na cultura baiana, este crustáceo não é apenas um combo na hora de pagar mais caro pelo acarajé, tampouco é sinônimo de status econômico, como disse Leonel. O pequeno animal da família dos artrópodes tem um papel crucial na comida baiana, além de ser alimento fundamental para a maioria dos orixás no candomblé. Oxum não abre mão do sabor do camarão em seu prato conhecido como Omolocum. O Amalá de Xangô é caprichado no camarão. Nos pratos típicos, seja seco, defumado ou fresco, o bichinho está lá presente, quase como um companheiro fiel do dendê. Inclusive, a tradição de utilizar o camarão na Bahia não vem da Europa, mas da África. Meio óbvio, mas não custa explicar.

“Ainda hoje em ruas de cidades nigerianas como Lagos, Ibadan, Oxogbô, entre outras vizinhas, é possível encontrarmos ao lado de caças e peixes o camarão defumado, desmentindo a ideia de que os africanos não utilizam camarão. Talvez eles utilizem o mesmo que a gente”, explica o doutor Vilson Caetano, professor da Ufba com doutorado em antropologia da alimentação. “Na cozinha de ritual, o camarão é chamado, em yoruba, de Edé. Aparece como um divisor de águas. Há orixás que “ pegam” camarão e os que não “pegam”. A imagem do camarão é muito próxima à imagem do peixe e a do cavalo marinho. Todos são referendados como filhos, filhas e mensageiros das Águas”, disse Vilson, que também é babalorixá. Entre os orixás, apenas Oxalá, por conta do sal, além de certos tipos de Oguns, não ‘pegam’ camarão. Se nem os orixás dispensam um bom camarão, quem somos nós para recusar?

Vamos comparar?

Camarão (preço médio, Água de Meninos)   
Cinza graúdo com casca: R$ 20 (Kg)
Camarão pistola com casca: R$ 37 (Kg)
Camarão defumado ou seco: R$ 40 (Kg)

Carne, porco e frango (Kg)
Carne do Sol: R$ 54,99 
Alcatra: R$ 50,99 
Filé Mignon: R$ 99,90
Picanha: R$ 63,79
Bisteca suína: R$ 21,45
Coxa e sobrecoxa: R$ 23,99
Filé de frango: R$ 23,50

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